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Uma janela para o passado

Uma janela para o passado

Começando a atravessar a linha de sombra literária, tive meu primeiro contato – e único, até hoje – com a obra de René Descartes. Li Meditações metafísicas porque sou filho de mãe católica; porque, antes, havia lido Marx; e porque ler Marx (convincente ao extremo com sua dialética precisa) na adolescência, provavelmente resulta, além de formar um marxista, na dúvida básica: afinal, Deus existe ou não?

Era uma fase, cambaleante juventude, em que eu buscava repostas em autores aleatórios. Schopenhauer. Nietzsche. Depois, virá Montaigne. Mas naquele momento, portanto, procurei “o livro no qual Descartes prova a existência de Deus”. E toda a memória conservada dessa leitura é que foi lenta, prazerosa – mas que, no final da sexta meditação, o autor francês, falecido em 1650, não me convenceu.

Um quarto na Holanda, de Pierre Bergounioux, de repente, arrastou-me para esse tempo.

Apresentado como ensaio biográfico – sobre Descartes, um período específico de sua vida –, o livro muito surpreende, principalmente, pela forma com que a narrativa é construída e conduzida até chegar na temática central. Bergounioux (também um escultor que explora o figurativo com elementos, de ferro, improváveis) condensa, em poucas páginas, um texto espesso: desenvolvimento europeu, arte, religião, política, filosofia anterior e posterior ao pensamento cartesiano.

Pontos periféricos, mas que, somados, potencializam o garimpo em Descartes e Holanda; e mais: alicerçam contextos para ambos.

Por exemplo: falando a respeito de França e Itália, cultura e guerras, Bergounioux menciona, em parágrafos subsequentes, Montaigne e Marx. Inesperado. Logo adiante, já tratando de outro assunto, vem a frase: “Por uma dessas aproximações em que os contrários se fundem, engendrando a unidade que os transcende, [et cetera]” – e o raciocínio manteve-se ecoando em minha mente.

Relacionei, de imediato, com Montaigne e Marx, pensadores – opostos? – decisivos para a minha formação (Um quarto na Holanda levando-me sem trégua, sem pedir licença, para específico passado, para vagas lembranças). Porém, alguns passos adiante, eu enxergava tudo pelo prisma das aproximações em que os contrários se fundem.

Como acabei observando a proposição de Bergounioux, Descartes no mesmo patamar de Shakespeare e Cervantes:

“O segundo realismo que Descartes elabora, sozinho, vivendo como um desconhecido, um estrangeiro na Holanda, é tão sedutor quanto as obras ficcionais mais ousadas daquele tempo, como as andanças erráticas do esquelético fidalgo que Cervantes leva pelos áridos caminhos da Mancha, ou como as extravagâncias dos príncipes ensandecidos colocados em cena, ao que parece, por Shakespeare. O inglês, o espanhol e o francês são irmãos.”

A forma com que a narrativa é construída, múltipla, permite certa movimentação livre do autor pelo ensaio. De modo que suas reflexões acompanham a movimentação de Descartes, ávido viajante, pelo mundo. Suas reflexões sobrepondo-se às reflexões de Descartes. Assim, enquanto o autor de Meditações metafísicas deslocava-se de um país para o outro, eu (deslocando-me ao passado) imaginava, em seu lugar (e talvez em meu lugar), uma figura de ferro, improvável, esculpida por Pierre Bergounioux.